domingo, 28 de fevereiro de 2016

Anestesia psicológica e cinema. – Observe os sintomas.

Síndromes contemporâneas.





 

Lembro que a primeira que vi o filme de Stanley Kubrick, Laranja Mecânica, me senti profundamente perturbada com a brutalidade de Alex de Large e seus amigos. Mesmo assim, arranjando estômago por muitos semestres sugeri o filme como tema de trabalho para meus alunos, pois ele levantava críticas e questões que davam muito o que pensar. Lembro também de quando vi Psicose de Alfred Hitchcock, nossa o que foi aquilo!
Bom, é o que foi aquilo mesmo, porque hoje isso não é mais nada. Virou fichinha perto do capítulo mais terno de Game of Trones e Ao lado dos filmes que contam O Exorcismo de Cicrana, Fulana e Beltrana, Normam Bates até que é um cara normal, afinal o coitado não tinha uma mãe legal, dá pra entender. Tem até uma série que explica direitinho.
Recentemente fui ver o mega indicado ao Oscar: O Regresso. O título é extremamente apropriado, porque desde a primeira cena eu só pensava em sair dali e regressar para casa. Não fui porque para minha aflição os acompanhantes não demostraram o mesmo sentimento. Não demostraram por puro estado de choque como vim a descobrir no fim do filme, assim como toda a plateia. Então fiquei, como um teste de resistência psicológico, onde eu tinha a nítida sensação de que o objetivo principal não é contar uma história, é mexer com os nervos, incomodar ao máximo o espectador, para testar, agredir, conseguir enfim comove-lo com alguma coisa, mesmo que seja com a ultraviolência, porque sexo já não escandaliza mais ninguém, por isso houve o advento dos 50 tons de cinza e afins. “Agora vai! Agora eles vão ficar escandalizados de verdade” animam-se os produtores. Nesse festival psicopata escuto ao fundo a voz de Quentin Tarantino esbaforido, correndo e gritando: Espera aí que eu estou chegando, vocês vão ver só o que eu consigo! Iñárritu responde: Não adianta botar os bofes pra fora, já fiz isso no meu filme com o Leonardo e um cavalo!
Na verdade o engraçado é que não tem graça nenhuma. Todos estes filmes e muitos outros atraem milhões de pessoas ao cinema, ou diante das televisões, se expondo sem filtro algum a vivenciar através do nosso mais contundente sentido uma realidade que em sã consciência e equilíbrio mental ninguém desejaria para si. Escuto a todo momento as pessoas dizendo como desculpa: “Mas a história é interessante”. Na verdade é difícil assumir, ou mesmo compreender que as pessoas desejam sentir medo, nojo e aversão. A nossa mente, ou alma, como queiram, é alimentada pelas experiências e percepções que temos, e elas ficam profundamente gravadas na memória, seja consciente ou inconsciente, se é bom eleva, se é tóxico envenena aos poucos.
As pessoas se encontram entorpecidas. A vida está sem graça, sem emoção e sem objetivo. Repleta de Intimidades Superficiais com a família amigos, colegas de trabalho, onde pode-se até conviver com as pessoas sem que a profundidade da alma possa ser partilhada. Com o cotidiano ocupado por frenéticos movimentos estagnados, onde parece haver produção quando se levanta todos os dias para trabalhar e estudar, mas na verdade nada está realmente acontecendo, o sentimento de vazio e estagnação é avassalador.
Isso esclarece o enigma do motivo pelo qual as pessoas andam se comprazendo com espetáculos do gênero, elas estão desesperadas. Desesperadas porque já não sentem mais nada, querem alguma coisa da dose mais forte que tenha na prateleira capaz de fazê-las sentir alguma emoção, mesmo que primária, que os lembrem que ainda são humanos, pois há tempos que as notícias do telejornal de massacres na Áfricas não valem uma olhada e as pessoas caídas na rua são o mesmo que um hidrante.
Mas isso acabou virando uma epidemia, algo semelhante a uma lepra psicológica. Os filhos de uma geração como essa estão se tornando pessoas extremamente agressivas e desesperadas, na esperança de que assim possam ser percebidas, mas tudo que acontece é lhe darem uma classificação, uma sigla correspondente a um transtorno mental que por sua vez pode ser tratado com uma pílula.
Já perdi a conta de quantos pré-adolescentes atendi com perturbações psicológicas instaladas após ver um filme de terror, passaram a ter enurese noturna e não conseguir mais ter um sono tranquilo sozinhos ou de luz apagada, chegando mesmo a desenvolver o início da Síndrome do Pânico. “Ah, é uma válvula de escape, assim a pessoa não coloca isso em prática, sublima vendo o filme ou no vídeo game”. Sério? Então é mais grave do que pensei, temos uma epidemia de psicopatas em potencial que precisam ser aplacados com uma produção constante de litros de sangue de artificial para que não queira ver o de verdade.
E como bem já dizia Jung, toda doença psíquica é uma tentativa errada de procurar a cura.

Gente, não é por esse lado.

2 comentários:

  1. Prezada Tatiana!
    Isso tudo me parece bem explicitado no livro "Normose" (a patologia da normalidade), de Weil, Crema e Laloup. Mas, vejo que há muitos que não concordam nem se conformam com a violência e buscam uma cultura de paz.Abraços,
    Cícero G. Fernandes - psicólogo e prof. da UFAM.

    ResponderExcluir
  2. Cícero G. Fernandes1 de março de 2016 às 05:12

    Retificando: Leloup e, no lugar de "Mas", "Como os próprios autores dizem".

    ResponderExcluir