sexta-feira, 20 de março de 2009

Farmacopéia de interesses
É cada vez maior o número de pessoas que surge no consultório clínico trazendo em sua queixa o jargão da bipolaridade. Digo “jargão” na intenção de postular a presença de uma espécie de “modismo social” que rege a atualidade, ratificada pelo crescente número de diagnósticos psiquiátricos pautados nessa vertente.
O “transtorno bipolar” é hoje a nomenclatura oficial (CID-10) para a antiqüíssima psicose maníaco-depressiva. Como é do conhecimento de alguns, foi Kraepelin quem ordenou o campo das psicoses durante todo o século XX, separando-as em três grandes grupos: a PMD (ou psicose maníaco-depressiva, a demência precoce (posteriormente chamada de esquizofrenia) e a paranóia. Por conseguinte, tínhamos uma demarcação clara entre neurose e psicose.
Acontece que a CID-10 (Classificação Internacional das Doenças) abriu mão dessa diferenciação e diluiu o campo , originalmente das psicoses, às manifestações pautadas em quadros de alucinação, delírios, catatonias, etc., promovendo um deslocamento no campo da diagnose. Conseqüentemente, a antiga PMD foi retirada da nosologia clássica, ganhando o contorno de transtorno e, juntamente com isso, os conceitos de neurose e psicose tornaram-se absolutamente fluidos, salvo os casos de esquizofrenia, onde, devido à gritante desestruturação subjetiva, mantém o edifício da psicose de pé.
Ainda que alguns vejam na perspectiva atual uma possibilidade de retirada do estigma social que a denominação ‘psicose’ acarreta aos sujeitos, o fato é que, quando o quadro maníaco-depressivo era assim denominado, medicava-se muito menos do que hoje. Sim, pois, com a indeterminação do campo, um número crescido de casos de histerias graves, dentre outras patologias, vem sendo diagnosticado e medicado como bipolaridade.
Em contrapartida, é sempre bom lembrar que Paulo Amarante, em 1995, ou seja, há quatorze anos, apontava que, no Brasil, “existem 63.000 especialidades farmacêuticas, das quais pelo menos 13.000 circulam no mercado, enquanto que a Relação Internacional de Medicamentos Essenciais (Rename), procura responder à orientação da Organização Mundial de Saúde no sentido de que os países em desenvolvimento adotem listas de medicamentos essenciais destinados a cobrir em torno de 80% das necessidades de medicamentos, adota uma lista de cerca de apenas 400 produtos”.
Há, portanto, muito mais drogas no mercado consumidor do que efetivamente é necessário ao perfil da população brasileira, o que leva-nos a pensar nos reais interesses da produção maciça de psicotrópicos, bem como nas práticas de uma vasta gama de profissionais que compõe o campo da Saúde Mental atualmente.
Por fim, não se trata, em absoluto, de defender um modelo ou outro de esquematização nosográfica, mas de compreender quem são os beneficiados quando este se institui ou se desmantela.

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